Vaticano, 18 de abr de 2014 às 21:37
Nesta Sexta-feira Santa, na celebração da Paixão do Senhor na Basílica Vaticana, a reflexão após as leituras foi feita pelo pregador da Casa Pontíficia, o franciscano Raniero Cantalamessa, que meditou sobre a traição de Judas e os males que traz o apego ao dinheiro.
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“Estava com eles também Judas, o traidor”
Dentro da história divino-humana da paixão de Jesus existem muitas pequenas histórias de homens e de mulheres que entraram no raio da sua luz ou da sua sombra. A mais trágica delas é a de Judas Iscariotes. É um dos poucos fatos comprovados, com igual destaque, por todos os quatro Evangelhos e pelo resto do Novo Testamento. A primitiva comunidade cristã tem refletido muito sobre ele e nós faríamos mal se não fizéssemos o mesmo. Ela tem muito a nos dizer.
Judas foi escolhido desde a primeira hora para ser um dos doze. Ao incluir o seu nome na lista dos apóstolos o evangelista Lucas escreve “Judas Iscariotes, que se tornou” (egeneto) o traídor” (Lc 6, 16). Portanto, Judas não tinha nascido traidor e não o era quando foi escolhido por Jesus; tornou-se! Estamos diante de um dos dramas mais obscuros da liberdade humana. Por que se tornou? Em anos não distantes, quando estava de moda a tese do Jesus “revolucionário”, tentou-se dar a seu gesto motivações ideais. Alguém viu no seu apelido “Iscariotes” uma deformação de “sicariota”, ou seja, pertencente ao grupo de zelotes extremistas que atuavam como “sicários” contra os romanos; outros pensaram que Judas estivesse desapontado com a maneira em que Jesus realizou a sua ideia do “reino de Deus” e que quisesse força-lo a agir no plano político contra os pagãos. É o Judas do famoso musical “Jesus Christ Superstar” e de outros espetáculos e novelas recentes. Um Judas muito semelhante a um outro célebre traidor do próprio benfeitor: Brutus, que matou Júlio César para salvar a República!
São reconstruções que devem ser respeitadas quando contém alguma dignidade literária ou artística, mas não têm nenhuma base histórica. Os Evangelhos – as únicas fontes confiáveis ??que temos sobre a personagem – falam de um motivo muito mais terra-terra: o dinheiro. Judas tinha a responsabilidade da bolsa comum do grupo; na ocasião da unção em Betânia havia protestado contra o desperdício do perfume precioso derramado por Maria aos pés de Jesus, não porque se preocupasse pelos pobres, assinala João, mas porque “era um ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que se colocava dentro”(Jo 12, 6). A sua proposta aos chefes dos sacerdotes é explícita: “Quanto estão dispostos a dar-me, se vo-lo entregar? E eles fixaram a soma de trinta moedas de prata” (Mt 26, 15).
Mas por que maravilhar-se desta explicação e achar que ela é banal? Não foi quase sempre assim na história e não é ainda assim hoje em dia? Mamona, o dinheiro, não é um dos muitos ídolos; é o ídolo por excelência; literalmente, “o ídolo de metal fundido” (cf. Ex 34, 17). E se entende o motivo. Quem é, objetivamente, se não subjetivamente (ou seja, nos fatos, não nas intenções), o verdadeiro inimigo, o rival de Deus, neste mundo? Satanás? Mas nenhum homem decide servir, sem motivo, a Satanás. Se o faz, é porque acredita que vai ter algum poder ou algum benefício temporal. Quem é, nos fatos, o outro patrão, o anti-Deus, Jesus no-lo diz claramente: “Ninguém pode servir a dois senhores: não podeis servir a Deus e a Mamona” (Mt 6, 24). O dinheiro é o “deus visível[16]“, em oposição ao verdadeiro Deus que é invisível.
Mamona é o anti-Deus, porque cria um universo espiritual alternativo, muda o objeto das virtudes teologais. Fé, esperança e caridade não são mais colocados em Deus, mas no dinheiro. Ocorre uma sinistra inversão de todos os valores. “Tudo é possível ao que crê”, diz a Escritura (Mc 9, 23); mas o mundo diz: “Tudo é possível para quem tem dinheiro”. E, em certo sentido, todos os fatos parecem dar-lhe razão.
“O apego ao dinheiro – diz a Escritura – é a raiz de todos os males” (1 Tm 6,10). Por trás de todo o mal da nossa sociedade está o dinheiro, ou pelo menos está também o dinheiro. Esse é o Moloch de bíblica memória, ao qual foram imolados jovens e crianças (cf. Jer 32, 35), ou o deus Azteca, ao qual era preciso oferecer diariamente um certo número de corações humanos. O que está por trás do tráfico de drogas que destrói tantas vidas humanas, a exploração da prostituição, o fenômeno das várias máfias, a corrupção política, a fabricação e comercialização de armas, e até mesmo – coisa horrível de se dizer – a venda de órgãos humanos removidos das crianças? E a crise financeira que o mundo atravessou e que este país ainda está atravessando, não é, em grande parte, devida à “deplorável ganância por dinheiro”, o auri sacra fames[17], de alguns poucos? Judas começou roubando um pouco de dinheiro da bolsa comum. Isso não diz nada para certos administradores do dinheiro público?
Mas sem pensar nesses modos criminosos de ganhar dinheiro, por acaso, já não é escandaloso que alguns percebam salários e pensões cem vezes maiores do que daqueles que trabalham nas suas casas, e que já levantem a voz só com a ameaça de ter que renunciar a algo, em vista de uma maior justiça social?
Nos anos 70 e 80, para explicar, na Itália, diante as imprevistas mudanças políticas, os jogos ocultos de poder, o terrorismo e os mistérios de todo tipo que atormentava a convivência civil, foi-se afirmando a ideia, quase mítica, da existência de um “grande Velho”: um personagem muito sagaz e poderoso que dos bastidores teria movido as fileiras de tudo, para finalidades somente conhecidas por ele. Este “grande Velho” existe realmente, não é um mito; chama-se Dinheiro!
Como todos os ídolos, o dinheiro é “falso e mentiroso”: promete a segurança e, em vez disso, a tira; promete a liberdade e, em disso, a destrói. São Francisco de Assis descreve, com uma severidade incomum, o fim de uma pessoa que viveu somente para aumentar o seu “capital”. Aproxima-se a morte; chamam o sacerdote. Ele pergunta ao moribundo: “Queres o perdão de todos os teus pecados?”, e ele responde que sim. E o sacerdote: “Estás preparado para satisfazer os erros cometidos com os demais?”. E ele: “Não posso”. “Por que não podes?”. “Porque já deixei tudo nas mãos dos meus parentes e amigos”. E assim ele morre impenitente e, apenas morto, os parentes e amigos dizem entre si: “Maldita a sua alma! Podia ganhar mais e deixar-nos, e não o fez![18]“.
Quantas vezes, nestes tempos, tivemos que refletir naquele grito dirigido por Jesus ao rico da parábola que tinha acumulado muitos bens e se sentia seguro pelo resto da vida: “Tolo, esta mesma noite a tua alma te será pedida; e o que tens acumulado, de quem será?” (Lc 12, 20). “Homens colocados em cargos de responsabilidade que não sabiam mais em qual banco ou paraíso fiscal acumular os proventos da sua corrupção encontraram-se no banco dos réus, ou na cela de uma prisão, justamente quando estavam pra dizer a si mesmos: “Agora goza, minha alma”. Para quem o fizeram? Valia a pena? Fizeram realmente o bem dos filhos e da família, ou do partido, se é isso que procuravam? Ou não acabaram destruindo a si mesmos e os demais? O deus dinheiro se encarrega de punir, ele mesmo, os seus adoradores.
A traição de Judas continua na história e o traído é sempre ele, Jesus. Judas vendeu o chefe, os seus seguidores vendem o seu corpo, porque os pobres são membros de Cristo. “Tudo aquilo que fizestes a um só destes meus irmãos pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Mas a traição de Judas não continua somente nos casos clamorosos aos quais me referi. Seria cômodo para nós pensar assim, mas não é assim. Ficou famosa a homilia que pronunciou numa Quinta-feira Santa o padre Primo Mazzolari sobre “Nosso irmão Judas”. “Deixem, dizia aos poucos paroquianos que tinha diante, que eu pense por um momento no Judas que tenho dentro de mim, no Judas que talvez vocês também tenham dentro”.
É possível trair Jesus também por outros tipos de recompensa que não sejam as trinta moedas de prata. Trai a Cristo quem trai a própria esposa ou o próprio marido. Trai a Jesus o ministro de Deus infiel ao seu estado, ou que, em vez de apascentar o rebanho apascenta a si mesmo. Trai a Jesus quem trai a própria consciência. Posso traí-lo até mesmo eu, neste momento – e isso me faz tremer – se enquanto prego sobre Judas me preocupo pela aprovação do auditório mais do que de participar da imensa pena do Salvador. Judas tinha um atenuante que nós não temos. Ele não sabia quem era Jesus, considerava-o somente “um homem justo”; não sabia que era o Filho de Deus, nós sim. Como a cada ano, na iminência da Páscoa, quis reescutar a “Paixão segundo S. Mateus” de Bach. Há um detalhe que cada vez me faz estremecer. No anúncio da traição de Judas, ali, todos os apóstolos perguntam a Jesus: “Porventura sou eu, Senhor?” Herr, bin ich’s?”. Antes, porém, de fazer-nos ouvir a resposta de Cristo, anulando toda distância entre o evento e a sua comemoração, o compositor insere um coro que começa assim: “Sou eu, sou eu o traidor! Eu tenho que fazer penitência!”, “Ich bin’s, ich sollte büßen”. Como todos os coros daquela obra, esse expressa os sentimentos do povo que escuta; é um convite também a nós, de fazermos a nossa confissão de pecado.
O Evangelho descreve o fim horrível de Judas: “Judas, que o havia traído, vendo que Jesus tinha sido condenado, se arrependeu, e devolveu as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: pequei, entregando-vos sangue inocente. Mas eles disseram: O que nos importa? O problema é seu. E ele, jogando as moedas no templo, partiu e foi enforcar-se” ( Mt 27 , 3-5). Mas não julguemos apressadamente. Jesus nunca abandonou a Judas e ninguém sabe onde ele caiu quando se jogou da árvore com a corda no pescoço: se nas mãos de Satanás ou naquelas de Deus. Quem pode dizer o que aconteceu na sua alma naqueles últimos instantes? “Amigo”, foi a última palavra que Jesus lhe disse no horto e ele não podia tê-la esquecido, como não podia ter esquecido o seu olhar.
É verdade que, falando ao Pai dos seus discípulos, Jesus tinha falado de Judas: “Nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição” (Jo 17, 12), mas aqui, como em tantos outros casos, ele fala na perspectiva do tempo, não da eternidade. Mesmo a outra palavra terrível referida a Judas: “Seria melhor para esse homem nunca ter nascido” (Mc 14, 21 ) é explicada pela enormidade do fato, sem a necessidade de se pensar em um erro eterno. O destino eterno da criatura é um segredo inviolável de Deus. A Igreja nos garante que um homem ou uma mulher proclamados santos estão na bem-aventurança eterna; mas de ninguém a Igreja sabe com certeza que esteja no inferno.
Dante Alighieri, que, na sua Divina Comédia, coloca Judas nas profundezas do inferno, fala da conversão, no último momento, de Manfred, filho de Federico II e rei da Sicília, que todos na sua época acreditavam que tinha sido condenado excomungado. Mortalmente ferido em batalha, ele confia ao poeta que, no último momento da vida, se arrependeu chorando àquele “que voluntariamente perdoa” e que do Purgatório envia para a terra esta mensagem que vale também para nós: “Terríveis foram os meus pecados, mas a bondade infinita com seus grandes braços sempre acolhe aquele que se arrepende”
É a isso que deve levar-nos a história do nosso irmão Judas: a render-nos àquele que voluntariamente perdoa, a jogar-nos também nós, nos grandes braços do crucifixo. A coisa mais importante na história de Judas não é a sua traição, mas a resposta que Jesus dá a ela. Ele sabia bem o que estava amadurecendo no coração do seu discípulo; mas não o expôs, quis dar-lhe a chance até o último momento de voltar atrás, quase o protege. Sabe por que veio, mas não rejeita, no horto das oliveiras, o seu beijo gélido e até o chama de amigo (Mt 26, 50). Da mesma forma que procurou o rosto de Pedro depois de sua negação para dar-lhe o seu perdão, terá procurado também o de Judas em algum momento da sua via crucis! Quando da cruz reza: “Pais, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23 , 34), não exclui certamente deles a Judas.
Então, o que faremos, portanto, nós? Quem seguiremos, Judas ou Pedro? Pedro teve remorso pelo que ele tinha feito, mas também Judas teve remorso, tanto que gritou: “Eu traí sangue inocente!”, e devolveu as trinta moedas de prata. Onde está, então, a diferença? Em apenas uma coisa: Pedro teve confiança na misericórdia de Cristo, Judas não! O maior pecado de Judas não foi ter traído Jesus, mas ter duvidado da sua misericórdia.
Se nós o imitamos, quem mais quem menos, na traição, não o imitemos nesta sua falta de confiança no perdão. Existe um sacramento no qual é possível fazer uma experiência segura da misericórdia de Cristo: o sacramento da reconciliação. Como é belo este sacramento! É doce experimentar Jesus como mestre, como Senhor, mas ainda mais doce experimentá-lo como Redentor: como aquele que te tira para fora do abismo, como Pedro do mar, que te toca, como fez com o leproso, e te diz: “Eu quero, seja curado!” (Mt 8, 3).
A confissão nos permite experimentar em nós o que a Igreja diz sobre o pecado de Adão no Exultet pascal: “Ó feliz culpa que mereceu tal Redentor!” Jesus sabe fazer de todas as culpas humanas, uma vez que nos tenhamos arrependido, “felizes culpas”, culpas que não são mais lembradas a não ser pela experiência da misericórdia e pela ternura divina da qual foram ocasião!
Tenho um desejo para mim e para todos vós, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs: que na manhã da Páscoa possamos acordar e sentir ressoar no nosso coração as palavras de um grande convertido do nosso tempo, o poeta e dramaturgo Paul Claudel:
“Deus meu, ressuscitei e ainda estou com você!
Dormia e estava deitado como um morto na noite.
Deus disse: “Seja feita a luz” e eu despertei como se dá um grito!(…)
Meu Pai, que me gerou antes da aurora,
coloco-me na tua presença.
O meu coração está livre e a minha boca está limpa, o corpo e o espírito estão de jejum.
Sou absolvido de todos os meus pecados
que confessei um por um.
O anel das núpcias está no meu dedo e o meu rosto está limpo.
Sou como um ser inocente na graça
Que tu me concedestes”.
Isso é o que nos pode fazer a Páscoa de Cristo.